Percival Puggina
Nas encrencas típicas de republiqueta bananeira em que o país se enfia, volta e meia a frase “Nós, que lutamos pela democracia…” é pronunciada com poses de estadista por membros do consórcio governante. Que é isso, companheiro? Pra cima de mim?
Desmentidos a essa alegada luta pela democracia são abundantes, inclusive por participantes da atividade clandestina que, mais tarde, se tornaram honestos historiadores do período. A balela da luta armada pela democracia requer relação inescrupulosa com a verdade.
O mais interessante — e quase ninguém com menos de 70 anos sabe disso — é que esses terroristas e guerrilheiros tiveram a oportunidade de proclamar à nação, em cima dos acontecimentos, quem eram e o que pretendiam. O regime que combatiam lhes deu acesso a todos os grandes meios de comunicação em rádio, TV e aos jornalões de então. Poucos momentos e raros documentos foram tão importantes para a história do período quanto o que resumo a seguir.
O mês de setembro de 1969 iniciou em plena vigência do AI-5. O presidente Costa e Silva sofrera um AVC e o Brasil era governado por uma junta militar. Duas organizações guerrilheiras, a ALN e o MR-8, haviam sequestrado, no dia 4, o embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, e imposto condições para libertá-lo: soltura de 15 presos políticos e publicação e leitura, “na íntegra, pelos principais jornais, rádios e televisões” (sic), de um manifesto que haviam redigido.
Despachar os presos para os destinos combinados era fácil, mas autorizar a ampla reprodução da catilinária dos sequestradores era constrangedora rendição… Contudo, a execução do embaixador por quem o havia sequestrado seria um mal maior. E a junta militar se rendeu.
Assim, ao longo do dia seguinte ao sequestro, em diferentes horários, a nação inteira leu, ouviu e assistiu ao texto redigido por Franklin Martins, um dos autores da operação. Oportunidade preciosa, dourada, única, para guerrilheiros e terroristas dizerem por que lutavam, afirmarem seus compromissos e cobrá-los do governo, não é mesmo? Qual o quê! O documento (leia a íntegra em “Charles Burke Elbrick” na Wikipedia) foi uma xingação em que os revoltosos falaram do que entendiam — ideologia, violência, revolução — e do que faziam — “justiçamentos”, sequestros, assaltos. Não há uma única menção às palavras democracia e liberdade.
O texto acima reproduz artigo que escrevi em 11 de janeiro de 2016, relembrando os fatos de 1969. Aquela “luta pela democracia”, da qual tantos fazem fila para se vangloriar, só retardou o processo político. E se tivessem vencido? Bem, teriam antecipado, para pior, em meio século, o estrago que passaram a produzir a partir de 2003.
Para saber a que distância andamos das liberdades inerentes à democracia, sem as quais não há Estado de direito, pense nestes males de consumo forçado, disponibilizados pelo regime em vigor. Pense em um Congresso de maioria intimidada e tímida, com medo até da sombra projetada pelo lado direito da Praça dos Três Poderes (STF) e dependente das emendas parlamentares proporcionadas pelo seu lado esquerdo (Palácio do Planalto). Pense em eleições com dogmas (em 2022 eram os dogmas das vacinas, das sagradas urnas sem impressora e da vida imaculada de Lula da Silva). Pense em censura (inclusive prévia), em multidões com tornozeleiras, em presos políticos, em exilados, em criminalização das opiniões, em obstinado e obcecado controle das redes sociais e plataformas. Pense em direito penal do inimigo; pense em todas as perguntas lógicas que ficam sem resposta e no silêncio com que tais silêncios são acolhidos. Pense, então, no jornalismo militante, também ele, de exceção em exceção, tornando-se cortesão do regime. E me digam se isso é próprio de uma democracia.
Nem em seus melhores devaneios nos anos 60 do século passado, Franklin Martins imaginaria tão amplo elenco de sucessos para sua revolução com os meios de então.
Percival Puggina (80) é arquiteto, escritor, titular do site Liberais e Conservadores (www.puggina.org), colunista de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil. Integrante do grupo Pensar+. Membro da Academia Rio-Grandense de Letras.